terça-feira, 26 de setembro de 2017

Guardado no armário - o sorrido quer sair do armário

Hora de tirar aquele velho sorriso do armário que lhe cai tão bem. É singelo, um pouco opaco, mas lhe cai bem. Os dentes um pouco tortos, por vezes amarelados. Mas são seus. E o conjunto lhe cai bem. O lábio é fino, mordido, usado. Mas adivinhe só? Lhe cai maravilhosamente bem.

Guarda aquele outro esquisito. Faz um barulhinho assim ó: "xiiiis". É chato, estridente. Vulgar. Um tédio.

Aquele lá que você guardou no armário e não tem usado pode até ser menos formoso. Mas adivinhe só? Lhe cai bem melhor.

Suor

Pelo caminho vou colecionando momentos. Seguro com força para sentir na pele cada detalhe. Há de se convir que a fórmula é agradável quando se tratarem de doces lembranças. Mas não se engane, existem momentos pesados, densos, obscuros, que por mais que a mão se abra ficam eles lá grudados na pele. Como suor seco, grudento, só que com cheiro de lágrima. Salgado.

Por vezes nos pregamos um peça e largamos ao longo do caminho boas lembranças. Sem querer, de maneira negligente, escorre como mel marcando os anos, diluindo-se num complexo de fatos a que se convencionou chamar de vida. Logo a vista não mais os alcançará, já que a marcha não caminha para trás para buscá-los.

Mas estes momentos que salgam a pele, ah meu amigo, estes ficam. E quanto mais o caminhante percorre o seu caminho, mais o corpo fica denso e sujo das memórias mal-amadas que insistem em ficar.

Chegado um determinado momento da jornada é inevitável: hora de lavar-se. Em bom e claro português: amigo, vá tomar banho. Ninguém aguenta mais teu cheiro de tristeza.


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Paternidade responsável

Depois de um período afastada de licença para seguir na vida, torno a me debruçar sobre um teclado com algum esforço.

Na medida em que desenvolvida a sonora batucada de dedos no teclado, há apropriação daquelas palavras no limbo de minha mente, que são aprisionadas naquele fundo branco brilhoso. Elas estão lá, presas, frágeis, pueris; e por mais que se debatam são impotentes diante da tinta fresca. Subitamente, inicia-se o tiroteio. Cada vez que pressionado o “delete” uma a uma subirá à terrível barra de espaço para morrer e sumir do mundo.

Considero que nestes 5 minutos diante da tela branca brilhosa cometi um terrível genocídio de palavras.

Prometo ter mais cuidado e somente colocá-las no mundo se tiver os meios de sustentá-las.

Sugiro que em tempos de orgia de pensamentos e “baby boom” de palavras as pessoas possam ser mais responsáveis. Afinal, palavras se juntam, constituem família e tornam-se frases. Frases estas que, uma vez ditas, ficam lá, presas, frágeis e imbecis no fundo branco brilhoso. Até que alguém as visite, momento em que o “delete” não mais terá os meios de retirá-las daqueles cujos olhos delas se apropriaram.


Aí, meu caro devasso, sua paternidade irresponsável de letras te tornará um belo de um bocó.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Grito de Guerra

Algo sem forma vem perturbar minha lembrança. É um sentimento estranho, vazio. E só me afeta ao me pegar desprevenida, pois passo o resto do dia de armadura. Há alguns meses eu a comprei, porém ela ainda não é minha. Agora que já tomei posse desta proteção, como posso ainda respirar o ar de sua falta?

As saudades estão no ar. São um gás que entra pela narina, pelos olhos, pela boca; penetra quando reconheço seu cheiro, seu rosto e seu sabor. Queima meu pulmão. Faz-me perder o ar. E assim chega ao coração.

De que servem as armaduras se não se é forte para lutar?

Hora de comprar uma bela espada, e encravar no peito do problema. Arrancar de meus ventrículos os germes contaminados. Purificar meu ar. Ir pra guerra de peito erguido, saudável e finalmente leve...

domingo, 11 de setembro de 2011

A Grande Questão.

Um viajante caminhava pelo deserto à procura de uma resposta. O ar seco e a longa caminha lhe fizeram esquecer qual era a pergunta que lhe tormentava, mas por alguma razão continuava a caminhar. Carregava consigo um pequeno frasco contendo uma solução, embora também não se lembrasse exatamente do que.
Cada passo se tornava mais difícil, e à medida que as pernas o levavam para frente, a memória ia ficando para trás. Até que em algum lugar no meio do nada, ele avistou um oásis.
O viajante pode finalmente desfrutar de um pouco de sombra, e dormiu logo que fechou os olhos.

Quando acordou já não sabia mais quem era, onde estava e principalmente o que estava fazendo sozinho no meio do nada. Avistou ao longe a silhueta de um homem montado num camelo. Avaliou a situação e decidiu que não importava qual a circunstância que o levara ao deserto, queria sair de lá. Avaliou o que poderia barganhar em troca do camelo, porém sua única posse era aquele pequeno frasco.
Acabou convencendo aquele homem a fazer negócio, e trocou o frasco pelo meio de transporte. Montou no animal e foi para longe daquele deserto, deixando a solução para trás.

E foi assim que perdeu-se a solução para a maior e esquecida questão da humanidade.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Papel

A página em branco me encara furiosa. Como posso não preenche-la depois de tanto tempo encarando-a? De certa forma entendo seu sentimento: Como posso estar ali, diante dela e ainda assim não ver absolutamente nada na minha frente? A página não é invisível, porém é de total irrelevância.

E mesmo se eu escrever algumas palavras no papel, mesmo se ele se tornar um pouco mais interessante... Quem irá lê-lo? Talvez ele seja solto ao vento sem que ninguém ouse pousar os olhos em cima daquelas palavras. Quem irá entendê-lo? Palavras soltas, incoerentes, incomunicáveis. Talvez aos olhos de uns sejam apenas seqüências de letras aleatórias.

A chuva pode chegar e molhar o que o vento levou, borrando as letras aleatórias e transformando as palavras em manchas tristes chorando sua tinta. O caos lava o sentido da escrita deixando tudo disforme para qualquer um que enxerga com os olhos.

Mas há quem prefira não enxergar, não tentar entender. Há aqueles que depois da chuva pegam o papel molhado e manchado de cinza, em tons de tristeza. Estendem ao sol para secar e encontram um novo sentido para aquele pedaço de nada manchado:

Lá vai o aviãozinho de papel, voando pelo céu.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Tudo e nada

Numa mesa redonda, quatro camaradas jogam cartas. Discutem sobre atualidades, sobre a vida, sobre absolutamente tudo e nada.
Num movimento brusco, um deles derrama o conhaque sobre a mesa; sujando assim a toalha, as cartas, o jogo, a vida, o tudo e o nada.
Com o jogo acabado, as cartas sob a mesa e um pano na mão, o bagunceiro resolve limpar tudo que fez de errado: limpou a mesa suja de bebida, limpou a casa, limpou o jogo. Pegou uma vassoura e varreu o pó para debaixo da mesa. Descontente, jogou a mesa fora. Descontente, quebrou as paredes de sua casa, as barreiras do condomínio, os limites da sociedade. Vôou.

Os amigos perplexos olharam aquilo, discutiram sobre o fato, sobre atualidades, sobre absolutamente tudo e nada. Puseram as cartas na mesa, o conhaque no copo, a sujeira na casa, as paredes ao seu redor, as barreiras no condomínio e os limites na sociedade.